Clarear é uma proposta de reflexão e renovação da prática da pedagogia Waldorf. Relata a história de crianças que estudaram em escolas Waldorf e traz por meio de críticas e perguntas dos pais Waldorf a possibilidade de aprimoramento da prática pedagógica. Clarear convida pais, educadores, escolas para um grande balanço e revisão, para a construção de uma escola melhor.
quarta-feira, 20 de julho de 2011
O Impacto que causa um pai sobre seus filhos
A sabedoria divina fez com que a maior ferramenta a ser utilizada na educação dos filhos fosse o próprio exemplo de vida dos pais. Através da psicologia tantas pesquisas e estudos tentam indicar caminhos de sucesso na educação das crianças!!! Quantos livros ensinam segredos para os pais! Porém o mais eficaz e poderoso meio de educarmos nossos filhos é e sempre será através de nossas atitudes diárias. Deus é sábio e fez com que a autoeducação dos pais se tornasse o verdadeiro e único caminho para a educação dos filhos.
abraço fraterno
Ana Lúcia Machado
sexta-feira, 15 de julho de 2011
ESCOLA DE PAIS III
Já discutimos aqui a questão da superproteção aos filhos, a ausência da dor e da frustração na educação de crianças e jovens e as suas graves consequências. O texto a seguir reforça esse tema com total lucidez e objetividade. Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista. Tem uma coluna na revistaepoca.globo.com às segundas-feiras.
Abraço fraterno
Ana Lúcia Machado
Eliane Brum
Abraço fraterno
Ana Lúcia Machado
Eliane Brum
Meu filho, você não merece nada
Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.
Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.
Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.
Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.
Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.
É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?
Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.
Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.
Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.
A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.
Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.
Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.
Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.
Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.
O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.
Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.
Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.
Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.
Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI247981-15230,00.html
terça-feira, 5 de julho de 2011
Consumo e escola por Luciane Lucas dos Santos
Esse texto é da Professora universitária e pesquisadora Luciane Lucas dos Santos que convida a escola a assumir seu verdadeiro papel na sociedade - o de formação de indivíduos capazes de atuar socialmente. Luciane propõe uma reflexão sobre o consumo do ponto de vista pedagógico e aponta alternativas viáveis de atuação da escola nessa direção. É um texto profundo e instigante:
Serve o consumo para pensar?!: Consumo e escola:
Há algumas semanas aconteceu o primeiro chat de consumo do Instituto Alana. Não pude participar, mas fiquei pensando sobre o assunto, principalmente porque um dos pontos abordados foi a relação entre consumo e escola. Postei várias coisas no twitter pós-chat, mas queria compartilhar aqui algumas idéias.
O consumo não é um ato solitário. Isto quer dizer que ele não é tão individual como muitos de nós acreditamos. O coletivo tem papel importante nas decisões de consumo dos indivíduos, já que os sentidos em circulação nos bens são sociais. O consumo individual, portanto, tem, por trás dele, um olho coletivo. Como intervir, então, nas representações sociais hegemônicas - nas idéias dominantes de beleza, verdade, justiça, elegância, diferença etc?
Se os pais têm papel, em primeiro plano, nos hábitos de consumo dos filhos, a escola não ocupa um lugar menos importante. Deve debater e refletir sobre o mundo vivido, os valores em curso na sociedade, o resultado da disseminação destes valores. Isto não significa que ela deva ser responsabilizada isoladamente pelas idéias com que as crianças chegam em casa. É preciso entender que a escola é um microcosmo da vida em sociedade; nela, manifestam-se os vários "pensares". E é bom que esta interação aconteça. Por outro lado, a escola não deve eximir-se de seu papel por conta das orientações que o aluno recebe em casa. De novo: a escola é um microcosmo do mundo vivido, reunindo inevitavelmente muitos olhares e perspectivas. É importante que a escola estimule não só uma ponderação mais crítica da realidade, como também prepare os muitos "pensares" para maior justiça cognitiva. De modo geral, família e escola devem compartilhar o trabalho de reflexão sobre as transformações (desejáveis ou não) nos sentidos de infância/adolescência, como serem, ambas, espaço de estímulo para outras experiências de troca e consumo cultural.
No caso específico da escola, a discussão sobre o consumo deve ser mais profunda e não resumir-se a trazer o consumismo como tema de debate em uma ou outra aula. As veias internas do consumo como fenômeno social precisam ser expostas para que sejam estimuladas novas práticas na vida da criança / adolescente. É preciso, por exemplo, não apenas ensinar ciência, biologia, química, mas expor o discurso científico em sua pseudo-neutralidade. O modelo de produção que hoje referendamos, as tecnologias que empregamos, os avanços da tecnociência que aplaudimos têm efeitos no mundo concreto. Ainda assim e na contramão destes efeitos, a ciência é ensinada nas escolas como neutra, como a forma mais nobre de saber. Sempre como se outras formas de pensar o mundo fossem rigorosamente anacrônicas e sem valor. Parecemos ignorar que, por trás do discurso científico, hoje, subjaz um modelo de performance, de corpo, de vida, de limite.
É preciso expor, em aulas diversas, o apartheid social que resulta da transformação do espaço em mercadoria (a cidade não é pra todos, haja vista a distribuição dos equipamentos urbanos). Do mesmo modo, é preciso debater algumas representações dominantes nos livros escolares. Dizem que a escola tem que ser neutra. Ok. Mas sua aparente neutralidade faz circular conceitos de crescimento e desenvolvimento que se tornam palavras de ordem. Quem questiona o que o crescimento implica e a quem se destina? Porque desenvolvimento é uma palavra a priori boa nos livros escolares?
Exemplos não faltam para levantar maiores reflexões. Enquanto cartilhas e livros enaltecem o agronegócio com o seu "crescimento para o país", nem sempre trazemos à superfície alguns saberes usualmente silenciados em aulas de História e Geografia (camponeses que trocam sementes para manter a diversidade biológica, a não divisão cultura x natureza pelos indígenas, os direitos de terra para os povos quilombolas). É preciso criar o respeito por outras culturas e ensinar que a diferença não é má, desde que ela possa manter como igual a condição de conversa. Um camponês não é residual no seu conhecimento em relaçãoà tecnologia do agronegócio. Esta hierarquia construída por uma imaginário tecnológico naturalizou-se entre nós. É preciso que a escola estimule ouvidos e olhos para as mundivisões.
A diferença deixa de ser fator de enriquecimento sempre que vira distinção social - uma das molas mestres do consumo. Se o consumo gera pertencimento e é hj um dos principais marcadores identitários, é preciso que a escola fomente com criatividade outros modos de construção e fortalecimento da identidade, que estimule outros modos de integração e reconhecimento de grupo. Circuitos diretos de troca podem ser uma saída criativa para redimensionar politicamente o valor das trocas na constituição da identidade. Podem, também, desatrelar o consumo cultural do aspecto monetário que hoje o inunda. Não seria oportuno que os professores estimulassem clubinhos de gibis, de saberes e habilidades? As possibilidades de troca entre os alunos podem ser múltiplas, ajudando a desconstruir a idéia de que o dinheiro seja a única mediação possível nas trocas. Neste sentido, descortinar outros rituais não-ocidentais de troca em aulas de geografia, sociologia, etnomatemática, pode ser útil para desmistificar a idéia de que formas de troca que não envolvam dinheiro sejam qualitativamente inferiores.
Debater, na escola, o consumo é também debater a descartabilidade que caracteriza o contemporâneo. Antes de incensar a reciclagem, é preciso fazer as crianças refletirem sobre o caráter dúbio da velocidade, da inovação, da criação de objetos novos em folha. Contar a história de Leônia pode ser um bom começo e uma boa metáfora. Cidade invisível de Ítalo Calvino, Leônia mostra o modo automático como nos viciamos na novidade, não percebendo mais os custos sociais e ambientais deste mundo permanentemente fresco e renovado. Conforme denomina Beatriz Sarlo, trata-se, hoje, de "colecionar atos de consumo". Neste sentido, seria bom que a escola investisse em soluções pedagógicas capazes de fazer ver o dia seguinte do nosso "enaltecimento ao descarte e inovação tecnológicos". Muitas são as formas de suscitar esta curiosidade e esta percepção: fotografar o que está no lixo, buscar saber que fim as pessoas dão aos seus celulares, investigar em que países vão parar os computadores velhos de que se desfazem, por exemplo.
Em suma, a reflexão sobre o consumo, do ponto de vista pedagógico, precisa ser redimensionada. Os excessos de consumo sempre preocupam os pais, é verdade. Mas o nó górdio do consumo é anterior. Tem a ver menos com a quantidade e mais com a própria natureza do consumo que legitimamos. O consumo é um sistema de classificação social, já nos tinha advertido, de formas diversas, Simmel e Veblen (no século XIX) e Bourdieu, mais recentemente. Logo, o debate sobre o consumo é, antes, um debate sobre os valores que o mercado dissemina e a que o espaço da escola, como parte do mundo vivido, não está imune. Uma escola realmente preocupada com este tema deve introduzir questionamentos sadios nos diversos programas de aula (incluindo química, física, biologia, além das matérias de natureza "social"), além de criar situações (visitas, aulas na rua, fotografias, gravação in loco, produção de infográficos em sala etc), em que a criança/adolescente tome contato com a realidade resultante de um mundo que escalona pessoas pelo que têm.
Serve o consumo para pensar?!: Consumo e escola:
A reflexão sobre o consumo no espaço da escola:
representações e outros assuntos na sala de aula
Há algumas semanas aconteceu o primeiro chat de consumo do Instituto Alana. Não pude participar, mas fiquei pensando sobre o assunto, principalmente porque um dos pontos abordados foi a relação entre consumo e escola. Postei várias coisas no twitter pós-chat, mas queria compartilhar aqui algumas idéias.
O consumo não é um ato solitário. Isto quer dizer que ele não é tão individual como muitos de nós acreditamos. O coletivo tem papel importante nas decisões de consumo dos indivíduos, já que os sentidos em circulação nos bens são sociais. O consumo individual, portanto, tem, por trás dele, um olho coletivo. Como intervir, então, nas representações sociais hegemônicas - nas idéias dominantes de beleza, verdade, justiça, elegância, diferença etc?
Se os pais têm papel, em primeiro plano, nos hábitos de consumo dos filhos, a escola não ocupa um lugar menos importante. Deve debater e refletir sobre o mundo vivido, os valores em curso na sociedade, o resultado da disseminação destes valores. Isto não significa que ela deva ser responsabilizada isoladamente pelas idéias com que as crianças chegam em casa. É preciso entender que a escola é um microcosmo da vida em sociedade; nela, manifestam-se os vários "pensares". E é bom que esta interação aconteça. Por outro lado, a escola não deve eximir-se de seu papel por conta das orientações que o aluno recebe em casa. De novo: a escola é um microcosmo do mundo vivido, reunindo inevitavelmente muitos olhares e perspectivas. É importante que a escola estimule não só uma ponderação mais crítica da realidade, como também prepare os muitos "pensares" para maior justiça cognitiva. De modo geral, família e escola devem compartilhar o trabalho de reflexão sobre as transformações (desejáveis ou não) nos sentidos de infância/adolescência, como serem, ambas, espaço de estímulo para outras experiências de troca e consumo cultural.
No caso específico da escola, a discussão sobre o consumo deve ser mais profunda e não resumir-se a trazer o consumismo como tema de debate em uma ou outra aula. As veias internas do consumo como fenômeno social precisam ser expostas para que sejam estimuladas novas práticas na vida da criança / adolescente. É preciso, por exemplo, não apenas ensinar ciência, biologia, química, mas expor o discurso científico em sua pseudo-neutralidade. O modelo de produção que hoje referendamos, as tecnologias que empregamos, os avanços da tecnociência que aplaudimos têm efeitos no mundo concreto. Ainda assim e na contramão destes efeitos, a ciência é ensinada nas escolas como neutra, como a forma mais nobre de saber. Sempre como se outras formas de pensar o mundo fossem rigorosamente anacrônicas e sem valor. Parecemos ignorar que, por trás do discurso científico, hoje, subjaz um modelo de performance, de corpo, de vida, de limite.
É preciso expor, em aulas diversas, o apartheid social que resulta da transformação do espaço em mercadoria (a cidade não é pra todos, haja vista a distribuição dos equipamentos urbanos). Do mesmo modo, é preciso debater algumas representações dominantes nos livros escolares. Dizem que a escola tem que ser neutra. Ok. Mas sua aparente neutralidade faz circular conceitos de crescimento e desenvolvimento que se tornam palavras de ordem. Quem questiona o que o crescimento implica e a quem se destina? Porque desenvolvimento é uma palavra a priori boa nos livros escolares?
Exemplos não faltam para levantar maiores reflexões. Enquanto cartilhas e livros enaltecem o agronegócio com o seu "crescimento para o país", nem sempre trazemos à superfície alguns saberes usualmente silenciados em aulas de História e Geografia (camponeses que trocam sementes para manter a diversidade biológica, a não divisão cultura x natureza pelos indígenas, os direitos de terra para os povos quilombolas). É preciso criar o respeito por outras culturas e ensinar que a diferença não é má, desde que ela possa manter como igual a condição de conversa. Um camponês não é residual no seu conhecimento em relaçãoà tecnologia do agronegócio. Esta hierarquia construída por uma imaginário tecnológico naturalizou-se entre nós. É preciso que a escola estimule ouvidos e olhos para as mundivisões.
A diferença deixa de ser fator de enriquecimento sempre que vira distinção social - uma das molas mestres do consumo. Se o consumo gera pertencimento e é hj um dos principais marcadores identitários, é preciso que a escola fomente com criatividade outros modos de construção e fortalecimento da identidade, que estimule outros modos de integração e reconhecimento de grupo. Circuitos diretos de troca podem ser uma saída criativa para redimensionar politicamente o valor das trocas na constituição da identidade. Podem, também, desatrelar o consumo cultural do aspecto monetário que hoje o inunda. Não seria oportuno que os professores estimulassem clubinhos de gibis, de saberes e habilidades? As possibilidades de troca entre os alunos podem ser múltiplas, ajudando a desconstruir a idéia de que o dinheiro seja a única mediação possível nas trocas. Neste sentido, descortinar outros rituais não-ocidentais de troca em aulas de geografia, sociologia, etnomatemática, pode ser útil para desmistificar a idéia de que formas de troca que não envolvam dinheiro sejam qualitativamente inferiores.
Debater, na escola, o consumo é também debater a descartabilidade que caracteriza o contemporâneo. Antes de incensar a reciclagem, é preciso fazer as crianças refletirem sobre o caráter dúbio da velocidade, da inovação, da criação de objetos novos em folha. Contar a história de Leônia pode ser um bom começo e uma boa metáfora. Cidade invisível de Ítalo Calvino, Leônia mostra o modo automático como nos viciamos na novidade, não percebendo mais os custos sociais e ambientais deste mundo permanentemente fresco e renovado. Conforme denomina Beatriz Sarlo, trata-se, hoje, de "colecionar atos de consumo". Neste sentido, seria bom que a escola investisse em soluções pedagógicas capazes de fazer ver o dia seguinte do nosso "enaltecimento ao descarte e inovação tecnológicos". Muitas são as formas de suscitar esta curiosidade e esta percepção: fotografar o que está no lixo, buscar saber que fim as pessoas dão aos seus celulares, investigar em que países vão parar os computadores velhos de que se desfazem, por exemplo.
Em suma, a reflexão sobre o consumo, do ponto de vista pedagógico, precisa ser redimensionada. Os excessos de consumo sempre preocupam os pais, é verdade. Mas o nó górdio do consumo é anterior. Tem a ver menos com a quantidade e mais com a própria natureza do consumo que legitimamos. O consumo é um sistema de classificação social, já nos tinha advertido, de formas diversas, Simmel e Veblen (no século XIX) e Bourdieu, mais recentemente. Logo, o debate sobre o consumo é, antes, um debate sobre os valores que o mercado dissemina e a que o espaço da escola, como parte do mundo vivido, não está imune. Uma escola realmente preocupada com este tema deve introduzir questionamentos sadios nos diversos programas de aula (incluindo química, física, biologia, além das matérias de natureza "social"), além de criar situações (visitas, aulas na rua, fotografias, gravação in loco, produção de infográficos em sala etc), em que a criança/adolescente tome contato com a realidade resultante de um mundo que escalona pessoas pelo que têm.
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